eu estava voltando para casa de algum lugar que já não lembro quando senti, vindo pelo ar, um cheiro delicioso de carne de panela sendo feita. você provavelmente sabe como é o cheiro de uma comida com tempero de verdade, com legumes cortados tão minuciosamente que se desfazem no cozimento.
imediatamente lembrei da minha avó.
lembrei do dia em que ela me ensinou a fazer uma macarronada como a dela. eu só precisava dizer “vó, como a senhora faz isso?” e ela me chamava para cozinha para fazer a receita passo a passo como num programa de TV. eu sempre ficava surpresa com o fato de nunca faltar temperos em sua casa. na minha, sempre falta. sinto que boa parte das gerações depois das avós dos adultos de hoje em dia se importa menos com temperos. mas minha avó, não. no cestinho ao lado da geladeira eu sempre encontraria tomates perfeitos, pimentões enormes, batatas firmes, alhos fartos. e nesse dia ela me explicou como fazer aquele macarrão que eu amava. dessa vez, diferente das outras, ela escreveu a receita no papel, como se não improvisasse a cada vez que acendia o fogo. essa era a magia da cozinha dela. tudo parecia — e era — um improviso calculado, que só se torna possível depois de anos de prática.
passei o resto da semana lembrando dela. quando saí sem batom, com a “cara pálida”, lembrei de sua voz me impedindo imperativamente de sair sem uma cor no rosto. ela nunca saía sem batom. e os dela tinham um formato específico, resultantes do seu jeito específico de passar e do formado de seus lábios. lembro de ser fascinada com aquilo. meus batons nunca tiveram o mesmo formato. não sei dizer se os meus batons parecem ser meus, como os dela. não consigo notar. mas sempre que passo um batom que realça meu rosto, sorrio lembrando que ela me elogiaria quando visse, e prossigo ao truque infalível de tirar o batom com um dedo na boca para evitar que o batom manchasse os dentes, que também aprendi com ela.
em nossas conversas, minha avó, pernambucana, sempre dizia palavras que eu nunca tinha escutado antes e que me soavam muito engraçadas. ela se divertia com o meu desconhecimento e me explicava, com graça, o significado daquilo. também me fascinava a quantidade de palavras incomuns que ela usava como se fizessem parte do vocabulário de todos. havia uma enciclopédia inteira dentro da minha avó, diferente de qualquer outra no mundo.
mesmo depois de décadas de horas diárias e ininterruptas de programação de TV do sudeste, minha avó nunca de distanciou de suas raízes. eu admiro isso nela e tento replicar em mim. demorei para ter orgulho de ser nordestina. até hoje, sem querer, suavizo meu sotaque. mas sempre que lembro dela, tento, ao máximo, deixar fluir o que é nosso desde o berço.
minha avó não era perfeita. para ser sincera, não lembro de muito carinho físico ou elogios. lembro de muitas críticas, inclusive. mas eu sempre senti seu amor em cada legume cortado, em cada batom emprestado, em cada palavra explicada. tinha um amor infinito no bolinho de feijão com farinha que ela moldava com as próprias mãos e me dava na boca. havia amor em colocar roberto carlos para tocar enquanto eu me arrumava para ir à escola.
sinto falta de chegar em sua casa, dar um cheiro em seus cabelos brancos e seu corpo suado. de ouvir ela reclamar sobre como estava difícil continuar cozinhando e fazer tudo que eu podia para deixá-la mais confortável. de comer o melhor tempero que conheci até hoje, mesmo quando ela dizia que não deu para “fazer direito”, enquanto ouvia suas histórias hilárias sobre jogo do bicho ou a novela da tarde.
me senti feliz em pensar que alguma criança por aí ainda come carne de panela repleta de um tempero inigualável. me senti feliz de lembrar que eu fui essa criança. e que alegria ter tido tempo o suficiente para crescer e entender a riqueza daquela presença; para, enfim, pedir uma receita.
sinto falta daquele sabor. tanto, que apenas um cheiro semelhante preencheu meu coração por dias.
sinto falta da minha avó.
avós <3 que delícia de ler e recordar também da minha, enquanto passava pelas suas palavras.